quinta-feira, 19 de outubro de 1995

A iluminação


Reverendo Al Green transforma abertura do Free Jazz no Metropolitan num culto de alegria e boa música

por Eros Ramos de Almeida e Hugo Sukman

Al Green, todo de branco, conquista o público cantando sucessos antigos • esbanjando simpatia numa performance que juntou Deus ao soul

E a luz se fez. Assim que o reverendo Al Green acabou de cantar "Tired of being alone", para delírio das pouco mais de duas mil pessoas que estavam na noite de terça-feira no Metropolitan para a primeira noite do Free Jazz Festival, entrou no camarim, cheio de sorrisos, exclamando: "Maravilhoso, maravilhoso". Seguiu-se uma sessão de bençãos — os que estavam atrás palco recebiam um simpático "God bless vou" (Deus o abençoe") do pastor — e comentários elogiosos ao público carioca.

— Adorei o show — disse Al Green, enquanto recebia reverentes beijos nas mãos. — O público do Rio é muito quente. Desejo o melhor para todos.

A santidade do soul estava realmente certa. O mesmo público que recebeu seca mas respeitosamente o Roy Hargrove Quintet e a cantora Rachelle Ferrell acompanhada pelo tecladista George Duke, delirou com o show de Al Green.

— Foi tudo que eu esperava e muito mais — celebrou Roberto Frejat, líder do Barão Vermelho, que foi ao Met, como a maior parte do público, apenas para ver Al Green. — Foi um show com tudo que se tem direito.

O público parecia concordar em gênero, número e grau com Frejat. Durante "Let's stay together", Al Green fez sua segunda incursão pela platéia, distribuindo flores, beijos, abraços e simpatia, conquistando definitivamente a platéia, que a esta hora acompanhava de pé a performance do cantor.

— E o melhor Agnaldo Timóteo do mundo — elogiou o ex-Barão Vermelho, Dé.

O frenesi cênico do cantor intercalando pulinhos, trejeitos e performances vocais — conquistou anônimos e ilustres.

Lulu Santos, no entanto, destoou do coro de contentes, embora também tenha ido ao Met para ver o culto musical.

— Senti o cheiro dos negros de Memphis, como queria, mas achei um show com validade vencida — afirmou Lulu.

Apesar do quase consenso em torno da qualidade do show, Al Green não conseguiu lotar o Metropolitan, embora tenha sido o show mais prestigiado da noite.

Às 21h45m, quando Roy Hargrove Quintet abriu a noite, menos da metade das mesas do Metropolitan estava ocupada. Mas por fãs fervorosos, como o deputado estadual Carlos Mine.

— Não há dúvida: Roy Hargrove é jazz, e clássico — disse.

Já a apresentação do tecladista George Duke com a cantora Rachelle Farrell, segunda atracão da noite, dividia opiniões,

— Ela é a maior cantora de jazz da atualidade — afirmou a cantora Itamara Koorax. — E o Duke é um músico de primeira.

— Foi um dos shows mais insuportáveis a que já assisti na vida — contrapôs Frejat.

O Metropolitan como nova sede do festival também não uniformalizou opiniões.

— Ocupar lugares maiores é uma tendência dos festivais de jazz em todo o mundo — afirmou o produtor Liminha.

Já George Israel, do Kid Abelha, prefere lugares menores, como a tradicional sede do Free Jazz, o Hotel Nacional. — O Met é legal mas o público fica muito apático num lugar tão grande — criticou.

Contudo, Israel viu a luz:

— Me converti ao culto de Al Green.


Banda de Al dá canja para poucos

O palco da Ritmo, casa noturna de São Conrado e reduto das canjas do 10° Free Jazz, ficou pequeno para abrigar os dez integrantes da banda de Al Green que apareceram por lá por volta das 3h, depois de uma rápida passagem no hotel apenas para trocar de roupa. Capitaneados pelo baixista John Williams, os vocalistas Levestia Miller e Jack Westbrook, o tecladista Ambric Bridgeforth e o baterista Daryl Wells esbanjaram competência e simpatia, tocando sucessos como "Mustang Sally", "Papa was a rolling stone" e "Let's stay together". Foram furiosamente aplaudidos. Pena que na platéia tivesse pouco mais gente que no palco.

Os músicos, todos protestantes, como Al Green, não se incomodaram com o reduzido público, permanecendo no palco por quase duas horas e tocando também com o baterista brasileiro Cláudio Infante e o violonista Mário Neto, da banda Bacamarte.

O baterista Daryl Wells, de Memphis como o resto da banda, disse que vibrou quando lhe disseram que o "Brasil era como a Jamaica".

— Adoro a Jamaica e estou gostando daqui. As mulheres, então... — Disse o baixista Wells.

FESTIVAL / CRITICA


■ ROY HARGROVE


Hargrove garante o futuro do jazz

por José Domingos Raffaelli

Roy Hargrove confirmou que é a grande revelação do trompete desta década. Com o seu quinteto, fez uma apresentação do melhor jazz moderno, de hoje, de agora, inventivo e desprovido de clichês.

Hargrove (trompete e flugelhorn), Ron Blake (saxes tenor e soprano), Stephen Scott (piano), Gerald Cannon (baixo) e Karriem Higgins (bateria) tocaram composições de Roy, exceto a balada "The nearness of you", que o trompetista expôs em rubato.

"Velera", balada que Roy delineou com lírica sensibilidade, "Brian's bounce", revivendo o glorioso início do bebop, e "The challenge", tema eletrizante que poucos se atreveriam a tocar tão rápido, desafiaram a habilidade de improvisaçaão dos solistas.

Com músicos como Roy Hargrove, o futuro do jazz está garantido.


■ DUKE & FERRELL


Profissionalismo versus barulho

por João Máximo

Para quem gosta de barulho, foi um show irretocável. Some os gritos de Rochelle Ferrell, os decibéis que George Duke arrancou de sua usina eletronica e a descalibragem do som do Metropolitan e terá idéia de como doeu nos ouvidos. Como de hábito, houve gente que ficou impressionada com os malabarismos vocais de Rochelle. O público adora piruetas (remember Bobby McFerrin). Mas, enquanto Duke tentava provar que seus teclados valem por uma orquestra (não vale, seu "pistom" mal encosta no de Hargrove), Rochelle perdia-se em gritos, uivos, roncos. Voz ela tem. Com seu primeiro disco (1992), fez muita gente acreditar que também sabia cantar. Salvou-se no show dela com Duke o profissionalismo com que os americanos costumam vender os produtos mais estranhos.


■ AL GREEN


O reverendo e o microfone inútil

por Luiz Henrique Romanholli

Se lá estivesse, o estrategista Gerson, o Canhotinha, berraria: "é.. é... brincadeira, tá certo?". A voz e a presença de palco de Al Green são uma coisa de louco. O reverendo joga a platéia de um lado para outro: celebração sensual e louvação a Deus. A nota só não é dez, porque Al Green trouxe uma bandinha fraca, fraca. O guitarrista — um sub Van Halen de quinta — era um nojo.

Mas Al Green é um fenômeno. Voz abençoada, falsetes inalcançáveis, senso de ritmo suingado, dinâmica sutil, criativida-de e uma emissão poderosa. A certa altura, o pastor ignorou o microfone e encarou a imensidão do Metropolitan na base do gogó e nada mais. De arrepiar.

Dois covers "Bring it on home to me" (Sam Cooker) e "Sittin' on the dock if the boy" (Otis Redding) valeram a noite.


Fonte: Jornal O Globo, Segundo Caderno, pág 1, 19 de Outubro 1995.