domingo, 26 de setembro de 1993

Alma musical de uma "lady"

por Árik de Souza

CD duplo reúne em 38 faixas
o estilo de Aretha Franklin

A filha do reverendo Clarence Franklin _ um desses tótens de carisma evangélico, mix de pregador e show man - foi educada na motortown Detroit, com o gospel de Mahalia Jackson, o blues/jazz de Dinah Washington e o rhythm & blues de Sam Cooke e Clara Ward a domicílio. Aretha Franklin poderia ter seguido o caminho musical que lhe desse na cabeça, adornada pelo cabelo turbante armado com laquê. Em vez de solução, este ecletismo se transformou num problema. Entre 1960 e 1966, os executivos da Columbia atiraram em todas as direções mas não conseguiram emplacar Aretha Franklin no alvo da Lady Soul revelada nos discos seguintes I never loved a man (The way I love you) e Respect, da Atlantic. O CD duplo Jazz to soul, que acaba de ser lançado, inventaria estes rascunhos com rara franqueza em 38 faixas que valem como um rallie estético. O disco prova que Aretha já nasceu feita. Ou quanto é surda a indústria musical.

A decisão pela carreira artística da garota nascida em Memphis, em 1952, baixou numa cena teatral durante uma cerimônia fúnebre. O desempenho da ídola Clara Ward comoveu a adolescente Aretha. Contagiada, ela descobriu a cabeça e atirou o chapéu no chão. Outro reverendo, James Cleveland, frequentador da casa dos Franklin, orientou a pupila no vocal e piano. E ela tomou conta do culto dos domingos da Igreja Batista de New Bethel. Com apenas 14 anos estreou em disco gravado na igreja de Detroit para o selo JVP, The gospel souls of Aretha Franklin, reeditado pela etiqueta bluseira Chess Records, nos anos 60. O descobridor de talentos da Columbia, John Hammond (o mesmo que farejou de Billie Holiday a Bob Dylan), tarou pelo demo da cantora de Today I sing the blues, original de Helen Humes, de 1948. "Fiquei totalmente dominado pela voz", admitiu. Contratou-a antes da RCA, que corria atrás por indicação de Sam Cooke.

Aretha gravou nos estúdios da 30th Street, em Nova Iorque, a inicial Today I sing the blues (a que abre o CD duplo, pavimentada pelo piano de Ray Bryant e a guitarra de Lord Westbrook) um imediato sucesso que emendaria com Won`t be long (76º na lista da Billboard no começo de 1961) numa falsa ascensão rápida. A seguir, discos como The eletrifying Aretha Franklin e The tender, moving, swinging Aretha mostravam que os produtores, mesmo o craque Hammond, começavam a andar em círculos. Jazz to soul viaja dos corinhos doo-wop ao instrumental jazzístico. Fica a contribuição milionária de erros como o de tentar ir na cola do baiãozinho bossa soul gravado por Dionne Warwick Walk on by, ou emular Brenda Holloway em Every little bit hurts e Barbara Lynn em You'll lose a good thing.

Mesmo sem uma definição estilística, Aretha cintila nas homenagens a Dinah Washington (What a difference a day makes, Drinking again), em Muddy waters e na jazzy Love for sale, além da balada jazz Blue holiday. Nas antecipadoras Running out of fools, Trouble in mind e Bit of soul já se desenha o pedestal da Lady Soul, erigido pelo produtor Jerry Wexler, na Atlantic. Qual a mágica que a transformaria numa devoradora de Grammies, par perfeito para o modelito soul/gospel formatado pela garganta arenosa de Ray Charles? "Eu a fiz sentar no piano e levei-a de volta à igreja", ensinou o produtor.



FONTE: Jornal do Brasil, pág 35, 26/09/1993.